Ana ainda era jovem quando um formigamento frequente nas mãos a fez procurar um médico. O sintoma aparentemente corriqueiro foi a pista inicial para iniciar uma investigação que durou meses até chegar ao diagnóstico.
Ana havia passado pelo primeiro surto causado pela esclerose múltipla, doença que ataca a mielina (proteína que reveste os neurônios e facilita a condução dos impulsos nervosos), provocando inflamações no cérebro e na medula.
Com incidência relativamente alta comparada a outras doenças raras, a Esclerose Múltipla traz controvérsias sobre sua classificação. Rara ou não, no Brasil ela atinge cerca de 35 mil pessoas que convivem com essa inimiga invisível, capaz de causar um impacto gigantesco na qualidade de vida.
A EM atinge principalmente adultos com idades entre 20 e 40 anos, e 75% dos pacientes são como Ana, mulheres. Tomada por um cansaço abrupto e mordaz, a pessoa com esclerose múltipla, muitas vezes, não encontra em seu entorno apoio para lidar com os sintomas velados e imprevisíveis da doença, além das reações agressivas de medicamentos que a debilitam. Ela carrega deficiências invisíveis e algumas vezes temporárias.
A forma mais comum da doença, a remitente-recorrente, se manifesta por meio de surtos esporádicos, podendo criar dificuldades para caminhar, problemas na visão, desequilíbrio, entre outros. Ou seja, quem tem EM pode precisar de uma bengala, por exemplo, por estar temporariamente cego, da mesma forma que pode precisar de tal recurso por não conseguir caminhar sem apoio. Ela não é cega, mas está cega. Não nasceu com uma deficiência física, mas está com a mobilidade reduzida.
#nosaproximando
Pensando nessas pessoas, todos os anos, na última quarta-feira de maio, organizações em todo o mundo se reúnem para celebrar o Dia da Esclerose Múltipla. Não por acaso, esse ano, o tema da campanha foi o #bringinguscloser. Em tradução para o português seria algo como “nos aproximando”.
O principal objetivo da data é disseminar informações sobre a doença e fortalecer os direitos dessas pessoas que hoje se encontram em um limbo de acessos. A Lei de Cotas, por exemplo, não inclui nas empresas o paciente de esclerose múltipla. Hoje, a análise para preencher a cota é realizada pela classificação internacional de doença (CID), que se baseia em um diagnóstico médico ou estado de saúde pré-determinado.
Com a regulamentação de artigos da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), que foi relatada por mim na Câmara e está em vigor há dois anos em todo o Brasil, essa realidade mudará, uma vez que a definição de deficiência passará a ser feita por meio da CIF, a classificação internacional de funcionalidade, conceito muito mais amplo, que leva em consideração a funcionalidade da pessoa e o contexto ao qual ela está inserida.
Tal premissa da LBI caminha de acordo com a ideia de que toda pessoa pode ser produtiva e contribuir com seu potencial, desde que as empresas se adequem à diversidade que reside em cada ser humano.
Tratamento e acesso a medicamentos
Embora a esclerose múltipla já tenha registrado seu PCDT (Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas) há muitas falhas do Governo no que tange a política pública dirigida aos pacientes. É comum recebemos denúncias sobre falhas na logística e distribuição dos medicamentos pelo Brasil.
Atualmente, o tratamento da EM é feito a partir de imunomoduladores, drogas cujo objetivo é diminuir a ocorrência de surtos e também o progresso da doença. O Fingolimode, por exemplo, é a primeira terapia oral distribuída pelo SUS – até então, apenas medicamentos injetáveis estavam à disposição. No entanto, esse e outros medicamentos para tratamento da doença já sofreram em algum período atraso em sua distribuição.
Um estudo divulgado pela AME (Amigos Múltiplos da Esclerose) constatou que dos remédios de alto custo solicitados por 13 mil pacientes pelo SUS, somente metade chega às mãos dessas pessoas. A pesquisa constatou ainda falhas sistemáticas nessa distribuição, com atraso na entrega ou total ausência do medicamento.
O estudo, realizado em três fases e com participação de 250 pacientes em cada etapa, apontou que em 2015 não havia remédio em 57,1% dos casos. No ano seguinte esse número era de 53,4% e, em 2017, chegou a 47,19%. Ou seja, em todos os períodos houve falhas consideráveis na distribuição dos remédios.
O problema foi verificado nos estados da Bahia, Ceará, Minas Gerais, Mato Grosso, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e no Distrito Federal, com atraso de um a três meses na entrega das drogas Avonex, Betaferon, Copaxone, o próprio Fingilomode, Rebif (22 e 44) e Tysabri. O estudo apontou também a ausência constante de ao menos um dos remédios nas prateleiras.
Com relação ao tempo de atraso, a associação apontou que, em 2015, a demora foi de um a três meses em 73,2% dos casos pesquisados. Em 2016, 61,7% dos entrevistados relataram longa espera para receber o remédio e, em 2017, esse percentual chegou a 47,2%.
Cadê a política pública?
Para mudar esses números desanimadores, venho há tempos cobrando o Ministério da Saúde, alertando também sobre o atraso de outros medicamentos para tratamento de doenças como a mucopolissacaridose, epilepsia, lúpus, além dos imunossupressores. Já fizemos, inclusive, representação no Ministério Público Federal e que já surtiu em recomendação ao MS, que por sua vez insiste em questionar o que vem sendo determinado pela Justiça.
Tal postura contradiz a própria atuação recente da pasta, que instituiu por meio da portaria 2.566 de 2017, o Núcleo de Judicialização, cuja finalidade é organizar e promover o atendimento das demandas judiciais no âmbito do Ministério da Saúde. O que assistimos na prática, no entanto, é o descumprimento da maioria das decisões judiciais.
Conviver com a esclerose múltipla exige tolerância para lidar com o intangível. O preconceito e a falta de informação dentro do mercado de trabalho ainda são barreiras a serem derrubadas. A outra, tão grande quanto, é içada pelo Poder Público, que precisa cumprir com a obrigação de garantir tratamento eficaz. O que inclui a possibilidade de viver com uma doença, sem perder todas as possibilidades que a vida garante.
Mara Gabrilli, é deputada federal e presidente da Frente Parlamentar Mista de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras. Publicitária e psicóloga, também foi vereadora na Câmara Municipal e Secretária da Pessoa com Deficiência da Prefeitura de São Paulo.