Importância da reabilitação em doenças raras
Por ser um processo dinâmico, a reabilitação em doenças raras exige o empenho de uma equipe multidisciplinar, com foco na melhoria das condições físicas e psicológicas dos pacientes
A pesquisa e o desenvolvimento de novos remédios para tratar doenças raras, os chamados medicamentos órfãos, são divisores de águas para quem tem uma dessas enfermidades. Além de atenuar os sintomas, esses tratamentos são, muitas vezes, capazes de desacelerar a progressão do quadro. Infelizmente, as doenças tratáveis com tais terapias ainda são poucas, considerando as 7 mil existentes e a estimativa de 13 milhões de pacientes raros no Brasil. Para se ter uma ideia, segundo a Interfarma, há drogas específicas para interferir na evolução de apenas 2% dessas patologias.
Diante desse cenário, é consenso entre os profissionais de saúde que a reabilitação é primordial para que esses indivíduos consigam conviver melhor com a doença. O apoio de profissionais de terapia ocupacional, nutrição, fisioterapia e fonoaudiologia, entre outros, contribui muito com sua qualidade de vida. Quando os pacientes se sentem bem fisicamente, seu estado emocional também melhora, evitando o isolamento e favorecendo o convívio familiar e social.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a reabilitação de pessoas com deficiência é um processo que permite alcançar e manter seus níveis funcionais físicos, sensoriais, intelectuais, psicológicos e sociais. Em outras palavras, proporciona as ferramentas de que necessitam para alcançar maior independência e autodeterminação.
Sendo parte integral de qualquer tratamento, a reabilitação deve ser iniciada o mais precocemente possível, assegurando o efeito terapêutico para o paciente e sua família para que se tornem mais confiantes durante todo o tratamento. Considerando que cada indivíduo tem necessidades específicas, uma avaliação prévia pela equipe que o acompanha é fundamental para estabelecer uma abordagem personalizada.
Reabilitação multifacetada
O acompanhamento de um paciente com doença rara envolve, geralmente, diversos profissionais de saúde – mas, dependendo da manifestação do problema, é dada ênfase a um tipo específico de tratamento.
Só para citar alguns exemplos, na Epidermólise Bolhosa – doença rara que acomete a pele, deixando-a extremamente sensível à menor fricção ou trauma – os cuidados com as feridas que se formam são primordiais para evitar infecções. Por isso, um enfermeiro especializado no tratamentos das lesões é fundamental para minimizar o impacto da doença. Já os pacientes com Mucopolissacaridose – doença rara, caracterizada por alteração óssea e articular, entre outras complicações- conseguem se beneficiar da reabilitação motora. O fisioterapeuta, nesses casos, costuma recorrer a exercícios que trabalhem a amplitude dos movimentos, o que favorece a independência do paciente.
Entenda, abaixo, quem são os profissionais de reabilitação e qual a sua importância no cuidado integral ao paciente com uma doença rara.
O terapeuta ocupacional é um profissional focado na promoção da saúde e na integração do indivíduo à sociedade. No caso dos pacientes com doenças raras, ele tem como missão estudar e empregar recursos para promover autonomia, facilitando a realização de atividades rotineiras.
“A terapia ocupacional permite que a pessoa viva sua vida da maneira como ela e sua família decidirem, exercendo seus direitos como cidadã”, avalia a terapeuta ocupacional Rosa Mitre, pesquisadora e coordenadora do programa Saúde & Brincar, do Instituto Fernandes Figueira (IFF) / Fiocruz, cuja proposta é recorrer à brincadeira livre e espontânea e prol da recuperação infantil. No IFF, Rosa trabalha com crianças hospitalizadas, além de oferecer tutoria aos médicos residentes que atuam no ambulatório de infusão, em que recebem portadores de doenças raras como a Mucopolissacaridose, Pompe e Fibrose Cística.
Como muitas doenças raras são degenerativas, o uso da tecnologia assistiva – conjunto de técnicas que ajudam as pessoas com limitação a conquistar mais independência – tem um papel preponderante. “Crianças com Mucopolissacaridose podem apresentar deformidades nas mãos, o que dificulta o manuseio de objetos ou mesmo as atividades do dia a dia, como abotoar uma camisa. Uma caneta mais grossa ou mesmo uma abotoadura que facilite o encaixe do botão são desenvolvidos para que essas pessoas se adaptem melhor à realidade da doença”, exemplifica Fernanda Maia, coordenadora da área de terapia ocupacional, da residência multiprofissional em crianças e adolescentes cronicamente adoecidos do IFF / Fiocruz.
Mesmo que não apresentem dificuldade neuromotora, muitos pacientes raros podem ser auxiliados pelos terapeutas ocupacionais. É o caso dos adolescentes com Fibrose Cística. “Como eles estão sempre em tratamento, precisam aprender a coordenar sua rotina, o que não é uma tarefa simples. O terapeuta ocupacional estabelece, junto com eles, uma estratégia de organização do cotidiano”, explica Fernanda Maia.
A reabilitação pela fisioterapia tem como objetivo a reintegração das funções motoras e a melhoria do condicionamento cardiorrespiratório. E, quanto antes a intervenção for realizada, melhor. Com 30 anos de experiência, a especialista Nicolette Celani Cavalcanti, do Centro de Reabilitação de Osteogênese Imperfeita (CROI), do IFF, ressalta a importância do diagnóstico precoce para o tratamento de pacientes raros: “Quando o encaminhamento acontece cedo, temos a oportunidade de agir preventivamente”, justifica.
Infelizmente, porém, nem sempre o acesso à fisioterapia é simples. Em sua tese de mestrado, Nicollete pesquisou as dificuldades encontradas pelos pacientes com osteogênese imperfeita – doença rara que fragiliza os ossos, provocando fraturas por traumas simples. Ela observou uma resistência na aceitação de crianças com o problema, na rede pública. “Pacientes raros são mais complexos de se tratar, por apresentarem, frequentemente, alterações multissistêmicas, pouco vistas na prática clínica. É importante que os profissionais sejam estimulados a se capacitar para aumentar a efetividade dos tratamentos”, contextualiza.
Geralmente, as sessões de fisioterapia são realizadas duas vezes por semana, em sessões de 45 minutos cada. Por se tratar de uma terapia individualizada, a frequência e a intensidade variam entre os pacientes. Crianças com a mesma doença podem apresentar resultados distintos, dependendo do tempo de diagnóstico, da abordagem terapêutica e do apoio familiar. “O progresso do paciente é mais significativo quando há envolvimento por parte da família. Posturas corretas, atividades direcionadas aos objetivos, tudo contribui para o desenvolvimento e a possibilidade de minimizar os prejuízos”, garante Nicollete.
Pacientes com doença rara necessitam, muitas vezes, de um suporte nutricional especial, seja pela impossibilidade de ingerir certos alimentos, capazes de agravar seu quadro, seja pela dificuldade em degluti-los, o que acarreta deficiência de nutrientes.
Muitos distúrbios do metabolismo são controlados, apenas, com uma mudança na dieta. No caso da fibrose cística, por exemplo, há carência na produção de enzimas pancreáticas, o que, por sua vez, atrapalha a absorção dos nutrientes pelo intestino, comprometendo o ganho de peso. Uma terapia nutricional com maior ingestão calórica, acrescida de suplementação vitamínica, favorece a recuperação do peso, melhorando as funções pulmonar e imunológica.
Uma situação semelhante afeta as crianças com fenilcetonúria, doença caracterizada pela falha na fabricação da enzima responsável por metabolizar um aminoácido chamado fenilalanina, presente em carnes, ovos, leite e outras fontes proteicas. Ao se acumular no organismo, ele promove um efeito tóxico, danificando seriamente o sistema nervoso. Por se tratar de uma condição que impõe inúmeras restrições alimentares, o papel do nutricionista é fundamental, a fim de garantir um bom aporte de nutrientes no cardápio, bem como opções alimentares palatáveis.
Há, também, esquemas alimentares específicos para reduzir determinados sintomas, contribuindo com o bem-estar do paciente. Um exemplo é a dieta cetogênica, recomendada no tratamento das crises de epilepsia. Rica em gorduras e pobre em proteínas e carboidratos, leva o corpo ao estado de cetose. Isso quer dizer que, diante da restrição de carboidrato, o organismo utiliza a gordura para a obtenção de energia, produzindo os chamados corpos cetônicos– compostos que agem na redução das crises epiléticas. Mas, por se tratar de uma alimentação restritiva, tem de ser individualizada e o acompanhamento nutricional é essencial para um resultado positivo.
O suporte nutricional ao paciente com doença rara deve seguir as etapas abaixo:
- Avaliação nutricional
- Cálculo das necessidades nutricionais
- Indicação da terapia a ser instituída
- Monitoramento/ acompanhamento nutricional
O fonoaudiólogo é um profissional que pode acompanhar a vida de uma pessoa desde o nascimento – cuidando do processo de amamentação– até a terceira idade, atuando nas habilidades auditivas, visuais e cognitivas do idoso.
Atualmente, o Conselho Federal de Fonoaudiologia reconhece 11 especialidades em Fonoaudiologia, entre elas, Audiologia, Linguagem, Motricidade e Disfagia.
A última, por exemplo, representa alterações na dinâmica de deglutição. “Esse tipo de distúrbio está presente em muitas patologias, incluindo algumas raras, como Pompe, Machado-Joseph, Niemann-Pick, Atrofia Muscular Espinhal Tipo I, Distrofia Muscular de Duchenne e Mucopolissacaridose”, explica a fonoaudióloga Luciana Behs, mestranda do programa de pós-graduação em ciências pneumológicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A terapia de deglutição pode ser direta (com alimento), indireta (sem alimento), de adaptação de consistências alimentares ou indicação de via alternativa de alimentação.
Ao melhorar a eficiência da alimentação por via oral, evita-se riscos respiratórios crônicos ou agudos, bem como a melhora da qualidade de vida dos pacientes e de seus cuidadores.
Outro exemplo da importância da fonoaudiologia é o tratamento de doenças neuromusculares, um grupo de mais de 40 enfermidades que afetam nervos e músculos. Nessa circunstância, além de atuar sobre a deglutição, o profissional realiza um trabalho fonoarticulatório, visando a recuperação da fala.
“É importante compreender que o diagnóstico de uma enfermidade crônica gera a necessidade de reconstruções e reelaborações na vida de quem sofre dela”, analisa a psicóloga Anita Silva Paez, que integra o programa Saúde e Brincar do IFF Fiocruz. “É o que o sociólogo Michael Bury chama de “ruptura biográfica”, uma espécie de marco, que estabelece um período antes e um depois de determinado evento”, afirma.
Em uma sociedade em que a noção de felicidade vem muito atrelada à perfeição física e a padrões preestabelecidos, a doença traz a necessidade urgente de se rever conceitos, expectativas e sonhos. A atuação do psicólogo entra nesse contexto, tanto nos momentos iniciais, após o diagnóstico, como no acompanhamento do novo padrão de comportamento construído pelo paciente.
Dependendo do momento da vida em que a doença se manifesta, o paciente necessita de uma abordagem específica. No caso das crianças diagnosticadas ao nascer, pode-se considerar que a doença fará parte de sua construção inicial como pessoa. Mesmo assim, é válido trabalhar o conceito de ruptura na experiência de seus pais e familiares próximos, que precisam reaprender a viver, ajustando-se a circunstâncias que não escolheram.
Anita destaca o papel da internet, que oferece novas possibilidades de interação e criação de laços de afeto e suporte. “É o caso da plataforma “Muitos Somos Raros”, que agrupa, sob a bandeira da raridade, condições muito variadas, valorizando o que se possa construir em comum”.
Com a criação das Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras (portaria 199 de 30/01/2014), “a atenção aos familiares e pacientes deverá garantir a estruturação de forma coordenada e integrada, em todos os níveis, desde a prevenção, acolhimento, diagnóstico, tratamento (baseado em protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas), apoio até a resolução, seguimento e reabilitação.” – Em conformidade com o documento, o Ministério da Saúde vem habilitando Centros de Referência para atendimento em doenças raras.
Veja a lista, atualizada em 2016 e divulgada pelo Ministério da Saúde:
- Hospital Pequeno Príncipe de Curitiba – Curitiba (PR)
- Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE – Anápolis
- Associação de Assistência à Criança Deficiente – AACD – Recife (PE)
- Inst. Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira – IFF Fiocruz – Rio de Janeiro (RJ)
- Hospital de Clínicas de Porto Alegre – Porto Alegre (RS)
- Hospital de Apoio de Brasília – Brasília (DF)
- Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) – Rio de Janeiro (RJ)
- Ambulatório de Especialidades do FUABC / Faculdade de Medicina do ABC – Santo André (SP)
O sistema público recebe os pacientes via sistema nacional de regulação (SISREG) – mecanismo criado pelo Governo Federal, que possibilita a gestão de pacientes, médicos e consultas cadastrados pelo SUS. Então, eles são encaminhados para ambulatórios de especialidades e centros de doenças raras, onde recebem diagnóstico e tratamento.
Além dos Centros de Referência Especializados em doenças raras, já existem os CERs (Centros Especializados em Reabilitação), com a função de atuar como “referência do cuidado e proteção para usuários, familiares e acompanhantes nos processos de reabilitação auditiva, física, intelectual, visual, ostomias e múltiplas deficiências”.
Segundo o Ministério da Saúde, o CER é um ponto de atenção ambulatorial, especializado em reabilitação, que realiza diagnóstico, avaliação, orientação, estimulação precoce e atendimento, concessão, adaptação e manutenção de tecnologia assistiva.
Os CER são organizados da seguinte forma:
- CER II – oferece duas modalidades de reabilitação
- CER III – oferece três modalidades de reabilitação
- CER IV – oferece quatro modalidades de reabilitação