Por Mara Gabrilli, exclusivo para o Muitos Somos Raros
Muita gente não imagina, mas antes de me tornar uma pessoa que depende do serviço de um cuidador, eu já cuidei de um idoso e de uma moça que, assim como eu, era tetraplégica. À época, sem imaginar que um dia estaria nas mesmas condições, tentei levar a ela um pouco mais de saúde, incorporando movimentos e produtividade em sua vida. Foi uma experiência enriquecedora e que me proporcionou know how para hoje entender, em todas as dimensões, a importância desse profissional na vida de uma pessoa.
Não por acaso, venho dizendo há muito tempo que sou um exemplo prático de que sozinho não se chega a lugar algum. Sem a parceria e a dedicação de uma cuidadora, eu não poderia sair da cama. Não chegaria nem perto de lugares e postos que conquistei ao longo da vida, mesmo depois de quebrar o pescoço e perder movimentos de braços e pernas. Ser psicóloga, fundadora de ONG, secretária municipal, vereadora, deputada por duas vezes, representante em um comitê na ONU e senadora. Tudo isso só foi possível porque tive o apoio de um profissional cuidador. Quantas pessoas com doenças raras, que são nossos homenageados neste mês de fevereiro, não poderiam estar produzindo, caso pudessem contar com esse serviço?
Falamos de pelo menos 13 milhões de brasileiros, que assim como as pessoas com deficiência, muitas vezes, precisam de outras pessoas para serem seus braços, suas pernas, seus olhos, seu ponto de apoio. Um apoio que pode custar muito caro em vários sentidos – e para muito além do financeiro. Falamos, por exemplo, de mães pobres, que são obrigadas a abandonar o mercado de trabalho e abdicarem de tudo para se dedicar a quem mais precisa. Essas mulheres, muitas vezes, são abandonadas pelos pais dos filhos após o diagnóstico de uma condição rara de saúde. Ficam à mercê do Estado, um ciclo vicioso de pobreza e dependência.
Mudar esse cenário é o que venho lutando há muitos anos. Ainda na Câmara dos Deputados, protocolei projetos sobre a temática e agora no Senado conseguimos, no final do ano passado, depois de muitas pesquisas e estudos, elaborar uma proposta robusta sobre a temática. Junto aos senadores Flávio Arns e Eduardo Gomes, apresentei o Projeto de Lei 2797 com a proposta de instituir uma Política Nacional do Cuidado.
Além de regulamentar a profissão de cuidador, o projeto prevê que pessoas idosas, com deficiência e com doenças raras que precisam de auxílio para as atividades rotineiras e cotidianas disponham de cuidadores custeados pelo sistema público de assistência social.
A proposta reúne os trabalhos de três subcomissões da Comissão de Assuntos Sociais do Senado: Subcomissão de Acompanhamento das Políticas Públicas para as Pessoas com Doenças Raras, Subcomissão de Assuntos Sociais das Pessoas com Deficiência e Subcomissão de Proteção e Defesa da Pessoa Idosa, que mergulharam nesta temática por meio de pesquisas quantitativas e qualitativas sobre o público a ser atendido que foram realizadas em parceria com o Instituto DataSenado.
Os resultados do trabalho apontam para um grande desafio, uma vez que não existem estimativas confiáveis do número de cuidadores de pessoas com doenças raras e de pessoas com deficiência no Brasil. O número que se tem traz apenas dados sobre esse serviço para a população idosa.
De acordo com o Ministério da Economia, a profissão de cuidador de idoso é a que mais cresce no país. Entre 2004 e 2017, o número desses profissionais aumentou de 4.313 para 34.051. Esse cenário se deve a uma mudança demográfica fundamental no país: além do crescimento da população de idosos, o aumento da expectativa de vida tem permitido que eles vivam por mais tempo.
Atualmente, nosso país tem mais de 28 milhões de pessoas com 60 anos ou mais, o que representa 13% da população. Esse percentual tende a dobrar nas próximas décadas, segundo o IBGE.
Com uma política de cuidados em nosso país, ampliaremos muito mais nossa mão de obra trabalhadora, deixando de onerar a saúde pública em vários setores e proporcionando a muita gente qualidade de vida e participação ativa na sociedade. Um movimento que vai ao encontro do tema deste ano para o Dia Mundial das Doenças Raras, o de tirar as pessoas do isolamento.
Neste sentido, sempre vale lembrar que não se faz políticas de inclusão sem incluir. Quando falamos das pessoas com doenças raras, o que presenciamos ainda é a exclusão. São poucos os canais de comunicação, como o Muitos Somos Raros, que se empenham em falar do tema. São poucos os parlamentares que se dedicam à causa. Na verdade, falta conhecimento da sociedade como um todo sobre a realidade de 13 milhões de brasileiros que têm uma doença rara e não conseguem ter acesso a diagnóstico precoce, tratamento adequado e multidisciplinar, medicamentos, além de informação correta e de qualidade.
Hoje temos uma Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras instituída pela Portaria 199/2014 do Ministério da Saúde. Mas as pessoas com doenças raras podem ter uma política pública garantida em Lei no Sistema Único de Saúde. Ajudei a aprovar o PL 1606/2011 na Câmara dos Deputados em setembro de 2016. No Senado, ele foi alterado pelos senadores em julho de 2018 e, por isso, precisou retornar à Câmara. O texto chegou a ter dois deputados designados relatores, no entanto, por ausência de vontade política, o texto segue parado sem ser deliberado.
O projeto de lei da Política Nacional é muito relevante e prevê, entre outras medidas, que cada estado deverá estruturar pelo menos um centro de referência em doenças raras para atenção à população. Além disso, determina a criação de um núcleo de especialistas e de comitês para ampliar a capacitação para o tratamento e encaminhamento dessas pessoas, assim como para fornecer suporte às famílias.
Felizmente, apesar da morosidade dos deputados, não podemos dizer que não avançamos em nada. São Paulo, por exemplo, já deu um passo importante e pioneiro, que pode se tornar espelho para o restante do país, com a recente sanção da Lei 17.618/2023, que institui a política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos à base de canabidiol e que atenderá um grande número de pacientes de doenças raras, como o próprio sobrinho do governador, que tem a síndrome de Dravet.
É se espelhando em avanços e encarando os desafios, que devemos celebrar esse Dia Mundial das Doenças Raras, unindo forças e dando cada vez mais voz e alcance a brasileiros que por toda a vida foram esquecidos. O primeiro passo é tornar o que hoje é um privilégio de poucos em um direito para todos.
Mara Gabrilli, é Senadora da República representando o estado de São Paulo e ex-presidente da Frente Parlamentar Mista de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras. Publicitária e psicóloga, também foi vereadora na Câmara Municipal e Secretária da Pessoa com Deficiência da Prefeitura de São Paulo.